Falsa Hidra

Arte por Arnold K.

O fenômeno conhecido como Cegueira por Desatenção ocorre quando um indivíduo falha em perceber um estímulo claramente à vista por motivos de falta de atenção, e este, então, passa despercebido. Por conta do fenômeno, é comum que pessoas deixem de notar eventos ocorrendo diante de si quando estão desatentas ou especialmente atentas a outros estímulos. Uma das teorias para a explicação da Cegueira por Desatenção sugere que a falha não se dá na percepção, mas sim na memória. Logo, o indivíduo consegue captar o estímulo, mas, por algum motivo, sua memória se esvanece imediatamente e o evento deixa de ser consciente.

Dizem que, quando a Falsa Hidra nasce, seu pescoço alongado emerge do chão, sua boca nojenta se abre e ela, então, inicia um canto. E, enquanto canta, ela é completamente ignorada. Um indivíduo que ouça a criatura não consegue notá-la, ou melhor, não consegue manter qualquer memória de sua presença, como no fenômeno da Cegueira por Desatenção. É como se a criatura criasse fendas na mente de seus ouvintes para que sua existência rastejasse por entre eles. Por esse motivo, a existência da Falsa Hidra causa paranoia naqueles que conhecem a lenda. Seria possível que ela estivesse lhe observando neste exato momento e você sequer se daria conta antes que fosse tarde demais.

A Criação

Originalmente postada em 2014 no blog Goblin Punch, a Falsa Hidra ganhou destaque no últimos anos na comunidade de D&D como um monstro homebrew com um sinistro conceito, capaz de gerar ganchos de aventura de mistério, investigação e horror e um tremendo plot twist. A proposta da criatura possui um conceito parecido com The Silence, ordem religiosa de alienígenas da série Doctor Who, cuja existência é completamente esquecida por aqueles que não mantiverem contato direto com eles. A diferença da Falsa Hidra é que sua presença é completamente ignorada mesmo que você esteja olhando diretamente para ela, desde que a criatura esteja cantando seu cântico maldito.

A proposta do presente artigo é revisitar a criatura, compreendendo seu conceito original e estudando formas de utilizá-la de modo que gere o máximo de impacto possível, explorando a ideia para o planejamento de aventuras de investigação e horror.

A Criatura

As lendas contam que a criatura nasce espontaneamente do solo, como uma semente que germina em resposta à existência de mentiras e falsidades. Dias, semanas ou até anos após seu nascimento, ela emerge como uma massa de carne, escondida num porão, esgoto ou canto escuro, de onde inicia seu cântico profano. O som alcança algumas milhas de distância e todos aqueles que puderem ouvi-la passarão a ser alheios à sua presença. O monstro se utiliza de seu poder para rastejar por entre o vilarejo, aguardando pacientemente o momento em que possa capturar uma presa e devorá-la até que reste apenas uma montanha de ossos.

O momento em que a Falsa Hidra se alimenta é sua fraqueza: para que possa devorar uma presa, ela necessita cessar seu canto, se expondo ao perigo de ser vista. Para se proteger, ela carrega sua vítima para um local seguro, onde possa realizar seu banquete sem interrupções. Contudo, mesmo com todo cuidado, é possível que um aldeão consiga testemunhar o ataque do monstro. Ele pode se desesperar, pensar em buscar ajuda, informar seus vizinhos... Em vão. Uma vez que a criatura reinicia seu cântico, todas as memórias sobre ela são esquecidas mais uma vez. "Por que eu estava tão assustada mesmo? Não consigo me lembrar... Bem, não deve ser nada importante."

Mas e quanto às vítimas do monstro? Suas famílias e amigos certamente dariam falta delas, não é? A resposta, infelizmente, não é a esperada. Uma vez que a criatura se alimente de um indivíduo, ele é absorvido por seu organismo, logo, passa a fazer parte de seu corpo. Sendo assim, as vítimas da Falsa Hidra  são igualmente ignoradas e esquecidas, assim como ela. É como se a vítima nunca tivesse existido. Ser devorado pela Falsa Hidra é um dos piores destinos, pois você sequer é lembrado por aqueles que lhe amam.

Situações incomuns causadas pelo esquecimento das vítimas da criatura podem causar estranhamento, mas, nesses casos, um interessante fenômeno ocorre, onde as mentes das pessoas afetadas pelo cântico inconscientemente criam explicações e as tomam como verdadeiras, como no fenômeno da psiquiatria conhecido como Confabulação. "A Catedral vazia? Não, nunca tivemos um sacerdote. Estranho, não é? Mas sempre foi assim."

E assim a Falsa Hidra se alimenta. E quanto mais se alimenta, mais ela cresce e mais cabeças nascem de seu corpo nojento. Quando a sétima cabeça nasce, é o sinal de que o monstro já está em sua fase madura, e que, provavelmente, já é tarde demais.

Influência

Como é possível perceber, a presença da Falsa Hidra é capaz de gerar inúmeros distúrbios naqueles afetados pelo cântico e seus influxos. Contudo, a influência da criatura não é completa e possui falhas. A mente dos indivíduos afetados pelo poder sugestivo, não apaga as memórias acerca da criatura, ele simplesmente as suprime. Sendo assim, o conhecimento ainda existe em algum lugar do inconsciente dos indivíduos, pulsando e clamando para retornar à consciência. Com isso, alguns atos inconscientes podem expressar o pavor sentido pelos aldeões. Cartas para familiares distantes podem parecer normais, mas conter no meio do texto mensagens explícitas de pedido de socorro que o remetente não se recorda de ter escrito.

A mente humana não consegue lidar com tamanhas perturbações. Enquanto a influência da Falsa Hidra cresce, a população ao redor se torna mais e mais paranoica. Aldeões passam a agir de maneira estranha. No final das contas, quando a criatura finalmente amadurece, sua canção adquire um novo aspecto, capaz de dominar totalmente as mentes em frangalhos de suas vítimas.

Nesse estágio de desenvolvimento, a Falsa Hidra abandona a furtividade, pois julga não ter mais motivos para tantos cuidados. Seu corpo imenso como uma amálgama de carne podre larga o esconderijo, seus sete longos pescoços emergem acima da cidade, observando a tudo e a todos, seus escravos mentais, enquanto se alimenta. Em pouco tempo, não restará ninguém. Mas sua fome nunca cessa.

Como Usar a Hidra Falsa

A melhor maneira de utilizar a Falsa Hidra é fazendo com que o grupo chegue a um vilarejo que recentemente passou a ser atormentado pela criatura. Um tipo de mistério assola a região e é possível perceber que há algo estranho com as pessoas. Os personagens deverão investigar com as pistas que possuem, descobrir acerca do monstro e formular uma maneira de lidar com ele antes que mais pessoas sejam devoradas e seja muito tarde.

Um possível ponto de partida é o grupo receber uma carta de um conhecido, com um pedido de socorro explicitamente escrito em meio ao texto. Ao chegar ao vilarejo, a postos para ajudar o amigo, este informa não ter pedido ajuda nenhuma e que talvez seja apenas alguém tentando pregá-los uma peça.

Com este ponto de partida, os jogadores já estarão cientes de que há algo de errado acontecendo, e a aventura poderá de fato começar. É claro que é possível se utilizar de outros ganchos de aventura, mas se faz relevante deixar explícito desde o início de que há alguma coisa esquisita no lugar.

Para que o impacto da Cegueira por Desatenção funcione e pegue os jogadores de surpresa, é importante evitar narrar coisas como "os personagens esquecem sobre o taverneiro", mas no lugar, descrever as situações normalmente, para, em seguida, dar pistas de que existe uma pessoa faltando. Por exemplo, a dona da hospedaria que alegremente os recebeu possui um anel de casamento, mas ela mesma informa que nunca foi casada. Caso uma jogadora tenha descrito que passou a tarde na taverna, mas não tenha descrito em detalhes a cena, no dia seguinte, ao retornar ao local, ela nota que não há taverneiro. "Que estranho, então como eu bebi nesta taverna ontem?"

Conforme o desenvolvimento da aventura, as pistas sutis podem se tornar mais claras, mas é interessante que o Mestre jogue de acordo com a proposta. Caso o grupo informe que deseja falar à dona da hospedaria do exemplo anterior, você pode responder: "Que dona da hospedaria? Não há ninguém gerenciando este lugar. Não sei do que você está falando.". Sim, estou sugerindo que o Mestre faça gaslighting. Os jogadores vão entender que há algo muito esquisito os afetando.

Você pode ir além e inserir sinais de que há um membro do grupo faltando. Alguém que sempre existiu, mas que eles não lembram por conta da influência da criatura. É cruel, mas causa impacto, faz parte da proposta.

Mas, uma vez que os personagens sejam afetados pela influência da Falsa Hidra, como eles podem lidar com ela, se suas mentes simplesmente não conseguem percebê-la? É possível que eles notem indícios da presença do monstro, talvez pela janela do quarto embaçada, como se alguma coisa estivesse respirando no vidro, talvez através de mensagens inconscientes deles mesmos, expressas através de sonhos ou mensagens que foram escritas enquanto eles dormiam.

Além disso, há, ainda, a maior fraqueza do encanto da monstruosidade. Para que alguém seja afetado, é necessário que se ouça o cântico. Sendo assim, personagens sem audição ou que bloqueiem seus ouvidos são intocados pela música maldita. Cabe aos jogadores descobrir essa informação.

O texto original acerca da Falsa Hidra sugere que a criatura possa ser vista através de espelhos (por se tratar de um modo indireto de visualizá-la) ou que animais sejam inafetados pela manipulação mental (uma vez que seus cérebros são muito diferentes dos nossos).

De todo modo, existem pistas que podem levar ao descobrimento da monstruosidade. E bibliotecas locais podem conter textos antigos com lendas acerca da situação para que o grupo se aprofunde naquilo que é conhecido sobre esta espécie de aberração. Com essas informações em mãos, caberá a eles criar um meio de lidar com a terrível Falsa Hidra.

Ficha de Monstro

O maior perigo da criatura não é exatamente sua presença em combate, mas suas capacidades de manipulação mental. Contudo, quanto maior for a besta, mais resiliente ela será. Seu número de cabeças também pode afetar a quantidade de ataques que ela pode efetuar. Abaixo proponho estatísticas da Falsa Hidra para DCC RPG. Para uma ficha adaptada à D&D, confira este link.

Falsa Hidra (DCC)

Falsa Hidra: Inic +5; Atq mordida +6 corpo a corpo (1d10+4); CA 16; DVs 1d12 (12 PVs) por cabeça; MV 6 m ou cavando 12 m; Ação 1d20 por cabeça; PE 1-7 cabeças, cântico maldito, devorar; JP Fort +9, Ref +7, Vont +5; AL C.

Em vez de atacar o corpo, é possível direcionar um golpe a uma das cabeças. Para cada 12 pontos de dano sofridos com um golpe de uma única arma, uma cabeça é cortada e o dano em excesso dos 12 PVs no último golpe se perde. Por exemplo, um único golpe de espada infligindo14 pontos de dano decapita uma cabeça com 12 PVs e os 2 PVs “restantes” são perdidos.

Além disso, uma vez que a criatura derrube um alvo inconsciente, ela pode tomar uma ação para devorá-lo e, assim, recuperar 1d12 PV. Enquanto devora uma vítima, a Falsa Hidra não pode ativar seu cântico maldito.

Referências

False Hydra

Inattentional Blindness

Confabulação

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