Qual a Melhor Estrutura de Campanha? Rinha de Railroad vs Sandbox

Arte por Snoo-11045.

Sempre trato por aqui acerca da valorização da agência dos jogadores e como esse é um dos pilares mais importantes de um jogo de RPG. Contudo no artigo de hoje gostaria de ir um pouco mais a fundo e discutir acerca da utilização desse conceito no desenvolvimento da narrativa de uma campanha, delineando noções de railroading, sandbox e traçando tangentes com a estrutura de campanhas episódicas.

Já tratamos acerca de agência num artigo anterior, mas, resumidamente, caracterizamos como agência a habilidade dos jogadores de, através de seus personagens, decidir os rumos da narrativa do jogo. Ao estilo inverso a essa liberdade de escolha e agência é dado o nome de railroad, que se traduz como algo nos "trilhos de um trem", com um rumo completamente definido e que não pode ser alterado. De forma sucinta, railroading (o ato de fazer railroad) acontece quando a Mestra nega a escolha do jogador para impor um resultado pré-concebido.

Estruturar uma experiência se valendo dessa técnica pode ser perigoso, pois os jogadores podem sentir que suas decisões não possuem valor no desenvolvimento do jogo, logo, sua utilização requer grandes precauções. Se faz comum a utilização de elementos desse estilo em situações particulares, como momentos nos quais a Mestra sinta que precisa tomar total controle da narrativa por um momento para a apresentação de algo que ela considera importante para o desenvolvimento da aventura, apenas retornando o poder de ação dos jogadores após a finalização de sua cena. Na prática, isso funciona como uma cutscene de videogame - você não pode interagir até que a cena termine.

Outras situações nas quais é comum a utilização da técnica também podem incluir o evitamento de grandes complicações/problemáticas para a trama (não permitir que um personagem mate um NPC importante, por exemplo). Usos mais controversos de railroading podem invalidar completamente a agência dos jogadores, guiando os rumos de toda a narrativa e os impedindo de tomar qualquer decisão significativa.

Um estilo de jogo railroad também costuma ser utilizado por grupos focados no desenvolvimento de uma trama em específico, cujo objetivo é criar um história coesa aos moldes de outras mídias focadas em storytelling. Nesse caso, os jogadores são cientes de que a Mestra vai limitar a agência e escolhas àquilo que pode desenvolver as propostas previamente acordadas pelo grupo. É muito importante para o bom andamento do jogo que todos estejam de acordo com a ideia e estejam a par de que em determinados momentos suas agências serão limitadas em prol de uma trama pré-concebida.

Entretanto, considero importante pontuar que uma estrutura de campanha focada no desenvolvimento de uma trama em particular não precisa necessariamente trabalhar com a técnica de railroading, uma vez que o grupo pode levantar termos de acordo com o estilo de jogo proposto e se comprometerem a tomar decisões focadas no desenvolvimento da proposta original.

Se os participantes concordarem que desejam explorar as propostas apresentadas pela Mestra, não se faz necessário podar sua agência de nenhuma forma. O grupo pode, em conjunto, desenvolver as ideias apresentadas pela Mestra de modo que todos fiquem satisfeitos com o desenrolar de uma trama alinhada à proposta original. Obviamente, sendo dessa forma, a Mestra não pode predeterminar a maneira como a narrativa irá se desenrolar, mas deverá decidir em conjunto com o grupo durante a partida. Posso exemplificar para deixar as coisas mais claras.

Digamos que um grupo defina que quer jogar num estilo puxado ao storytelling, logo a Mestra cria um cenário rico, elementos interessantes com potencial dramático para uma possível trama. Os jogadores, por sua vez, elaboram personagens bem construídos que se relacionam ao cenário. Em seguida, ao invés de preparar uma sequência de acontecimentos pré-concebida, determinando o desenrolar da campanha antes mesmo dela começar, a Mestra pode apenas criar linhas gerais e descobrir como, de fato, as coisas se desenrolam no decorrer da partida, juntamente do restante do grupo. Os jogadores, comprometidos à proposta, tomarão decisões que de alguma forma desenvolvam os elementos sugeridos pela Mestra.

Por outro lado, existem outras modalidades de jogo que se valem muito mais da agência dos jogadores, dentre elas o estilo sandbox e a estrutura de campanha episódica.

Os jogos no estilo sandbox possuem o ideal de liberdade de escolha e verossimilhança que os jogos de papel e caneta costumam buscar. Evita-se a utilização de paredes ou trilhos invisíveis que restrinjam a atividade do jogador. Os personagens são livres para perseguir seus próprios objetivos, em seu próprio ritmo, e explorar um mundo inteiro limitados apenas por suas próprias decisões. Para que essa proposta funcione exige-se a combinação de hábil preparação e uma boa dose de improvisação da Mestra, mas também bastante iniciativa por parte dos jogadores.

O D&D original, o primeiro dos jogos de RPG, lançado em 1974, foi criado sob a perspectiva de campanhas sandbox, onde era função da Mestra criar uma locação inicial, que seria a base dos personagens, e o mapa da região. A partir daí, o grupo exploraria os arredores, enfrentaria monstros, rastejaria por masmorras e saquearia tesouros.

O que o caracteriza um sandbox é a liberdade dos jogadores de poder viajar para qualquer lugar e interagir com qualquer coisa que exista no cenário. Quando os personagens avançam de nível e se tornam mais capazes de explorar mais coisas e descobrir novas regiões, a Mestra cria mais material para o cenário. Começa pequeno e cresce a partir daí. Nota-se a extrema valorização da agência do grupo.

Por outro lado, conseguimos levantar questões acerca da organização de material para as aventuras, que pode exigir grande preparo do cenário mas ao mesmo tempo possuir anotações relativamente vagas de localidades específicas, o que tem potencial de parecer deveras complexo e carecer de grande capacidade de improvisação para o bom andamento do jogo.

Em meio a essa relação de agência do jogador, railroad, estilo de campanha sandbox etc. podemos levantar a estrutura de campanha episódica, muito utilizada em jogos do tipo west marches e também naqueles que buscam maior influência de aventuras pulp, fontes de inspiração para o D&D original.

Os contos de Conan o bárbaro, por exemplo, eram originalmente lançados em revistas categorizadas como pulp, nos longínquos anos 20 e 30 nos Estados Unidos. Em suas aventuras, o cimério enfrentava grandes perigos, e suas histórias, que, apesar de acompanharem o personagem no decorrer de sua vida, se apresentavam de maneira episódica. Cada conto era uma aventura distinta, fechada em si mesma. Uma campanha de RPG estruturada de maneira episódica busca esse tipo de experiência, na qual cada aventura é uma trama por si só, sem a necessidade de grandes arcos de narrativa.

O termo west marches, por sua vez, se refere a um tipo de campanha episódica que abrange características como extrema rotatividade de jogadores e ausência de "história". Grupos de personagens geralmente se formam no início da sessão, exploram determinadas localidades, masmorras ou ambientes perigosos e ao final retornam a sua base de operações. Na sessão seguinte, um novo grupo de personagens se forma e decide o que deseja explorar, construindo sua própria aventura. Talvez ambientes já tenham sido explorados por grupos anteriores, mas o cenário pode reagir de maneira adequada a novas incursões.

Campanhas episódicas, abordadas como os contos de Conan, não se comprometem a entregar uma sequência específica de acontecimentos ou grandes arcos de história, mas experiência distintas, que existem por si mesmas. Numa sessão, os personagens podem resolver investigar uma mansão abandonada, enquanto, em outra podem escolher se envolver com druidas de uma religião perdida que nenhuma relação possuem com a aventura anterior. Na prática, campanhas episódicas funcionam como um compilado de one shots que acompanham a trajetória de um grupo de personagens (que pode até mesmo se renovar com o passar do tempo).

Apesar de se apresentar através de aventuras distintas, conexões podem ser construídas: o fantasma da mansão abandonada que decidiu acompanhar os personagens pode ser utilizado pelo grupo como moeda de troca com os druidas e se tornar uma peça vital de seu culto, por exemplo. Elementos podem ser entrelaçados através da ação dos personagens, construindo uma trama complexa e cheia de elementos que são desenvolvidos pelos próprios jogadores, valorizando sua agência dentro do jogo e construção da narrativa.

É importante notar que nenhuma dessas estruturas ou modalidades precisa necessariamente ser fixada numa campanha: campanhas podem mudar de estilo, de foco e se tornarem o que o grupo quiser de acordo com seus gostos e vontades. Cada uma pode se constituir numa ferramenta a se utilizar e, sendo assim, pode ser bem ou mal aplicada a depender daquele que a usa. Só toma cuidado com railroad, beleza?

Referências

The Railroading Manifesto

Old School D&D was Built For Sandbox Campaigns

Sandbox Campaigns?

How Do People Run a DCC Campaign

Grand Experiments: West Marches

Some Brief Thoughts on Campaign Structures

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